28 de ago. de 2008

Republicação nº 8

Remexendo um jornal velhão , de iniciante no jornalismo, achei esta matéria e resolvi colocar aqui. Feita por mim para o Diário da Serra, Botucatu, em setembro de 1999. Gostei muito porque foi inusitado; hoje não sei se teria coragem de entrar numa “gruta” com um mendigo “malucão”, mas...
Antes que me perguntem: não sei o que aconteceu com ele. Tive este único contato e nenhum interesse em saber mais.
*Bem, resolvi trocar os nomes também.
Chamada de Capa:
Indigente que mora embaixo da ponte
afirma que é Deus
Morando debaixo do viaduto no trevo de Bofete, aos 62 anos, José* ... chama a atenção de quem passa na estrada e de jornalistas de toda região: montou uma barraca de lona muito grande, fez uma plantação de milho também de tamanho suficiente para despertar a curiosidade . “Sempre pára gente aqui para conversar comigo”, afirma José, que de início se mostra uma pessoa como outra qualquer e conta ter perdido todos seus bens e a família em Laranjal Paulista.
O depoimento de José até então era mais uma entrevista de uma pessoa sofrida e que mostra bem o retrato do país. Era. Pois, de repente, ele desandou a profetizar a respeito de diversos assuntos. Mostrou uma fotografia de Jesus Cristo e garantiu ser ele aos 18 anos de idade. Em seguida afirmou que vai se casar novamente e que seu primeiro filho será o “salvador do novo mundo”.Em alguns momentos, José tem consciência. Fala da perda não só do dinheiro, mas da família. Vive num mundo de sonhos para fugir de tanta desilusão. Talvez esse seja o retrato mais cruel da desigualdade social.
Matéria:
Idoso mora sob ponte e garante ser Deus
José, 62, diz que seu filho será o “salvador do novo mundo” e acredita ter ganhado do governo as “terras férteis” onde tem plantação
Iêda Santos
Existem pessoas como José*..., 62, que levam uma vida simples sob um viaduto, sentem-se felizes e fazem dos seus sonhos a realidade de sua vida, acreditando até ser o “salvador do mundo”.
José disse que é separado há mais de 7 anos, tem 7 filhos e morava em Laranjal Paulista até perder toda a família, a terra, a casa, o trabalho, tudo que tinha para um homem “ruim”. “Bagunçaram todas as minhas coisas e a polícia me trouxe para cá. Se fosse esperar pela família, morreria de fome”.
Há dois anos, debaixo do viaduto do trevo de Bofete e em terras ao redor, planta mandioca, milho, amendoim, abóbora, cria galinhas e cachorro. A primeira vista, que foi o que nos levou a procurá-lo, era apenas um mendigo mais “versátil”, que sabe aproveitar as oportunidades que surgem ao redor.Mas o que encontramos não foi apenas isso. Foi um homem completamente alucinado, acreditando que pode oferecer várias oportunidades à sua amada Elisa*, que irá morar com ele e ter, segundo José, o filho de Deus do novo mundo. “Eu sou Deus, ela é uma Deusa. E vamos ter um filho, o filho de Deus”.
O indigente afirma, com uma convicção surpreendente, que Elisa está predestinada a ele e que morando com ele terá uma vida bem melhor que em Laranjal. “Ela anda bem arrumada, trabalha no Banco e deve ganhar uns R$200,00, mas aqui ela estará comigo e vou dar tudo o que ela quiser. Dá para ter um restaurante ali (aponta onde o construiria) e um carro para ela ir para Laranjal. Ela virá para cá e sabe que não poderemos cortar o cabelo”.
Com esta vida e todos os sonhos, José diz que se sente feliz, só falta a companheira ao seu lado. “Se Deus quiser (ops, mas Deus não é ele?) vou ficar aqui pra sempre. Sei trabalhar em muitas coisas, não posso sair daqui para roubarem tudo o que tenho. A terra já é minha, o governo me deu”.Várias coisas que diz são baseadas em “documentos” que ele guarda em uma sacola velha com cuidado, em uma parte da “casa” que não nos deixou entrar. Por exemplo, o documento que comprova que ele é dono das terras é um jornalzinho falando da reforma agrária, a foto dele aos 18 anos é um calendário com a foto de Jesus Cristo.
José, que não tem documentos, diz que foi criado em um sítio em Anhembi, que a família é muito religiosa, que fez primeira comunhão e que estudou pouco, mas sabe ler. Agora recebe ajuda das pessoas, que lhe dão sementes para a plantação, pão e algumas coisas que tem na sua “casa”.
O homem que será pai do “salvador do novo mundo” acredita em tudo que lê, qualquer folheto, revistas velhas etc, têm alguma história da sua vida. Cupons em revistas para comprar livros, por exemplo, são notas fiscais para ele fazer compras ou vender seus produtos.
Para conseguir fazer José responder algumas coisas sobre sua vida, precisamos ficar muito tempo ouvindo sua história do novo mundo e, ai sim, conquistamos certa confiança. Apesar de ter “histórias extraordinárias”, em alguns momentos mostrou ser lúcido, como quando falou da economia do Brasil. “O problema é que as pessoas mudam nossas vidas, mas o governo é bom”.
Os acontecimentos que ocorrem diariamente no Brasil ele fica sabendo por jornais velhos ou por pessoas que aparecem e lhe contam. “Sempre pára alguém para conversar comigo aqui”.A verdadeira vida de José é uma incógnita porque não dá para saber o que é realidade e sonho, mas ele diz que sem dúvida alguma é feliz. “O ruim é ficar sozinho, apenas isso”.

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